quinta-feira, 22 de julho de 2010

RASGARAM 25 MILHÕES DE REAIS

Está para completar um mês que o profissional de futebol Bruno Fernandes, goleiro do Clube de Regatas Flamengo, do Rio de Janeiro, visita diariamente o noticiário policial de todas as redes de televisão do país e muitas do exterior. Muito se escreveu sobre Bruno em jornais, revistas e sites. Ele virou capa das principais publicações de circulação nacional. Há quase um mês, esse jovem de 25 anos, com salário mensal de R$ 200 mil (que alcança R$ 500 mil, somado o faturamento com publicidade), é assunto em todos os lugares: de reuniões de grandes executivos a qualquer sala de trabalho, de almoços ou jantares familiares a mesas de bares.

Dia após dia, acompanhamos as investigações sobre o desaparecimento da amante do goleiro, Eliza Samudio, a localização do suposto filho de ambos na casa da esposa de Bruno, Dayanne Rodrigues Souza, e as suspeitas da polícia sobre um caso de assassinato. Soubemos da prisão de um elenco de suspeitos (com nomes prosaicos e culinários que vão de Coxinha a Macarrão). Por fim, assistimos ao final do primeiro capítulo de um novelão de terror, a detenção de Bruno como mandante de um possível crime. Assistimos e lemos, falamos e comentamos, até opinamos sobre a paternidade de filhos de amantes, sem jamais reconhecermos o assassinato. O caso ingressou em nossa rotina, presenciamos a tudo isso - no mínimo indignados.

Não quero me estender mais no relato de detalhes já explorados no noticiário. Gostaria de examinar o caso sob outro ângulo. Refletir com os leitores sobre um patrimônio dilapidado por “executivos” despreparados à frente de “empresas” à beira da falência. A rigor, sob o ponto de vista do grande negócio em que se transformou o futebol atual, os jogadores são “produtos” adquiridos no mercado interno, a preços reduzidíssimos, para mais tarde serem vendidos por milhões de dólares ou euros ao mercado externo.

Vamos tomar o Flamengo como exemplo de “empresa” e Bruno como um de seus mais valorizados “produtos”. Eles podem simbolizar melhor o que acontece no futebol brasileiro. Em campo, apesar do fiasco na Copa do Mundo, temos um dos cinco melhores times do mundo, em qualquer situação. Fora dos gramados, não passamos de um Zimbábue. Ou seja: somos uma espécie de Brasibaba. De chuteiras, uns artistas; de terno e gravata, umas “babas”. A culpa é de oportunistas travestidos de dirigentes esportivos, incapazes de administrar, como qualquer gestor de carreira, a trajetória e a vida de atletas talentosos e promissores, mas que social e moralmente não passam de jovens despreparados, inseguros e marginais.

A maioria desses “produtos” é originária de estruturas débeis. Em geral, surgem em favelas ou casas precárias da periferia de nossas grandes cidades. Alguns não conhecem os pais, outros foram abandonados. Convivem com o crime e a delinqüência juvenil. A violência é rotina, de casa para a rua, da rua para a casa. Enfrentam deficiência da mesa de refeição à carteira escolar.

Formados no meio de um verdadeiro faroeste, tanto no sentido simbólico como real, ao se tornarem ídolos (ou seja, “produtos” caros e cobiçados dos estádios) tais jovens metem literalmente os pés pelas mãos. Com os pés, eles são notáveis; com as mãos, uma tragédia brasileira. Não conseguem conviver com a fama e a riqueza adquiridas em pouco tempo de vida. Desde a Copa conquistada pelo Brasil em 1958 até hoje, a valorização dos atletas brasileiros está intimamente ligada aos seus dramas pessoais. E ninguém – ninguém mesmo – se prestou ou se interessou em administrar suas agruras fora de campo.

A nossa maior omissão (além dos dirigentes, nós também temos uma parcela considerável de culpa) talvez tenha sido com Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha. Vida e pernas tortas. Jovem simples, nascido em 1933, transformou-se num dos mais geniais ídolos do futebol, inspiração para poema de Carlos Drummond de Andrade. Fama e dinheiro acabaram, 50 anos depois, com o homem.

Casos como o de Mané acontecem com freqüência. Com mais ou menos gravidade, eles se repetem até hoje, como o episódio do goleiro Bruno. Antigamente, numa época mais romântica, os descaminhos eram administrados pelos clubes no papel de família, e pelos técnicos, exercendo a função de pai durão.

Foi assim nos anos 1970 com o são-paulino Sérgio Bernardino, o Serginho Chulapa, centro-avante titular da lendária Seleção Brasileira de 1982. Famoso e com o bolso estufado de grana, continuava a morar numa casa sem acabamento nos fundões da Zona Norte de São Paulo, embora não dispensasse roupa de grife para desfilar com seu Ford Maverick, roxo, zero quilômetro, que estacionava numa garagem de chão de terra. Temperamento forte, ele foi salvo por um dos raros clubes que tem algo de profissional em sua administração. Serginho credita ao São Paulo o fato de não ter seguido pela estrada da criminalidade.

Nos anos 1980, outro caso chamou a atenção da imprensa. O atacante do Palmeiras, grande revelação, Carlos Alberto Seixas, havia sumido dos treinos por três dias. O técnico Oswaldo Brandão foi até a casa do jogador. Descobriu, então, que Seixas morava no mesmo barraco de uma favela de Osasco, onde foi criado. Estava com uma pneumonia, adquirida pelas condições precárias em que vivia e pela má alimentação, mas tinha três automóveis diferentes, novinhos, do ano, na porta do casebre. Brandão cuidou do jogador como se fosse seu filho.

O romantismo e a paternidade terminaram, coincidentemente ou não, a partir do momento em que os clubes pretenderam se transformar em empresas. A mudança só ocorreu no papel e na oratória. Na verdade, os executivos profissionais e remunerados nunca assumiram o lugar dos despreparados e oportunistas dirigentes. Resultado: as dívidas que já eram enormes deram lugar ao processo de falência. Apenas os rombos dos clubes no INSS são espantosos.

Prova desse samba do crioulo doido é o Flamengo. Foi campeão nacional no ano passado, mais pelos erros de seus adversários do que por méritos próprios. A partir daí, seus principais jogadores foram fotografados com metralhadoras de traficantes, dentro de favelas dominadas pelo crime organizado. Compraram veículos de criminosos e foram “escoltados” por bandidos em orgias, após jogos no Maracanã. Envolveram-se em brigas de homens e mulheres, bailes funk ao lado de marginais, escândalos sexuais de capa de revista de fofoca. Finalmente, estourou o caso com o goleiro Bruno, num possível assassinato, com requintes de crueldade. E a bola mudou de horário e cenário. Começou a rolar nos principais programas policialescos da televisão brasileira.

E o que fez a “empresa” Flamengo diante de tantas aberrações? Nada. Seus principais dirigentes acompanharam passivamente, como todos nós, os noticiários sensacionalistas e a degradação de seu patrimônio. Podia ter sido diferente. O sinal amarelo acendeu quando Bruno deu uma entrevista sobre a briga do jogador Adriano com sua namorada, afirmando que gostaria de saber de alguém quem “ainda não saiu na mão com uma mulher”. Naquele momento, presidido pela ex-nadadora Patrícia Amorim, o Flamengo tinha que ter interferido. O motivo era claro: o goleiro não estava no melhor de sua razão. O clube devia contratar um psicólogo para acompanhá-lo. Tinha que agir. Hoje, quase um mês depois do caso Bruno, o novo cartola rubro-negro Zico admite que houve erro da direção por não ter agido.

Num exercício de lógica, não é descabido imaginar que o silêncio dos dirigentes do Flamengo significaria admitir que seus pais batessem em suas mães e que suas filhas e suas netas um dia fossem agredidas por seus companheiros. Se, na época, a diretoria tivesse tomado uma medida preventiva, talvez pudesse evitar a tragédia. Para o bem de um ser humano (funcionário do clube, como recomenda qualquer regrinha básica de RH) e de um valioso “produto” do futebol globalizado, facilmente negociável com os melhores times do mundo. Assim, “empresa” e “produto”, de mãos dadas, hoje estariam festejando a venda do passe do goleiro para o Milan, da Itália.

Mas, como se diz no jargão do futebol, a cartolagem “atentou contra o próprio patrimônio”. Fez gol contra. A complacência da presidente e de seus auxiliares, neste episódio, os levou a assistir de forma condescendente, a destruição moral de um ser humano e a dilapidação do “capital” do Clube de Regatas Flamengo. De modo claro: rasgaram, nota por nota, mais de 25 milhões de reais. E enfiaram o dinheiro na latrina de uma cela de seis metros quadrados numa cadeia pública de Minas Gerais.

Um comentário:

  1. Infelizmente,
    essa gente humilde,
    pobre,
    largada que entra para o futebol, vindos de uma favela, muitas vezes,trazem no "pacote" vida, quando entram para um clube, muita coisa boa, mas também, mta coisa ruim por não terem tido estrutura familiar, amor, educação, base alguma...

    Passam a ganhar mta grana do dia para a noite, usam perfumes caros, carros bons, blindados, grana , grana, e mais grana. Mulheres aos montes. Para quem não tem estrutura de vida, é um prato cheio para a desgraça, a derrota o desequilíbrio. E ninguém, absolutamente ninguém está preocupado com o clube, com a imagem dele ou com a vida do infeliz contratado que agora ta "nadando" no dinheiro. A história se repete. Não é o primeiro caso de se "lambuzar" com o mel... mas o caso do Bruno é assustator.

    O tempo passa e a polícia não chega a conclusão afinada do que houve exatamente com a Samudio.

    Pior, é deixar a mídia trazer para a população detalhes sórdidos que talvez nenhum filme de terror ainda tenha feito.

    Quanto ao Flamengo...eles precisam aprender que não basta ter um bom jogador no elenco deles. Há que se gastar mais grana com gente especializada em dar estrutura psicológica para esses caras. E ter limites para com eles tb.

    Me lembro do Telê, na Copa de 90, nos contando na Itália que ele passava horas conversando com jogador que torrava grana. Que trocava de carro a toda hora... Ele pacientemente explicava para ele que não era bom negócio. Fazia contas com o cara... Mas, o Telê já foi. Estamos vivendo outros tempos.

    É preciso cuidar mais do ser humano.

    Um beijo,

    C
    O
    N

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