A convivência com meus quatro netos me transporta diariamente para as ruas do Grande Brás, um dos primeiros bairros da cidade de São Paulo, que se estendia até o Belenzinho. A região era conhecida como paragem do Brás. Servia de parada para quem se dirigia da Freguesia da Sé à Freguesia da Penha. No princípio, o trajeto de menos de 15 quilômetros era chamado estrada da Penha. Hoje, compreende as deterioradas e decadentes Avenidas Rangel Pestana e Celso Garcia.
A forte presença de imigrantes italianos caracterizou o Brás. Sua influência se fez sentir de maneira decisiva naquele bairro onde nasci, cresci e alicercei moral e sentimentalmente toda a minha vida. Hoje, quase 60 anos depois, quando vejo meus netos a dedilhar as teclas do computador e do iPhone para acessarem o Twitter, Orkut e Facebook ou jogos eletrônicos, lembro das minhas atividades lúdicas pelas ruas do Brás. Do pega-pega entre meninos e meninas - de pular corda, andar de bicicleta e patinete, bater bolinhas de gude em ruas de terra, empinar papagaios, jogar de pião e correr no carrinho de rolemã.
Ontem – ou anteontem – e hoje. No sofá com os quatro garotos assistindo Nickelodeon, Discovery Kids ou Cartoon Network e vendo a disputa entre eles para escolher o canal preferido, sinto saudades do futebol de rua, da bola de meia velha das nonas, da bola de capotão e das brigas provocadas pela decisão dos 22 juízes. Nunca havia unanimidade. Como dizia Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”. No nosso caso, a falta dela, era porrada.
Nessa minha atual viagem, patrocinada pelos meus quatro guris cibernéticos, que me leva do passado ao futuro, me entrego a comparações e ilações que me confortam. Se eles não viram e não viveram, não sentirão a falta também. Os jogos eletrônicos instalados no home theater para eles é o futebol das ruas do Brás para mim. Se o Vale do Silício, na Califórnia, Estados Unidos, é fonte de entretenimento e inspiração para as novas gerações, o Brás é meu modelo, régua e compasso. Ninguém nasce no Brás impunemente.
Foi no Brás que teve origem o futebol brasileiro. Na Rua Monsenhor de Andrade, travessa da Avenida Rangel Pestana, na várzea do rio Tamanduateí. Ali, no início do século passado, morava um escocês e uma brasileira de origem inglesa, de cuja união nasceu Charles Willian Miller - uma criança que seria conhecida no mundo como o "pai do futebol brasileiro". Aos 9 anos, ele saiu do Brás e foi estudar na Inglaterra, onde aprendeu a jogar futebol. Quando voltou ao Brasil e para o mesmo bairro, difundiu o futebol e foi o responsável pela criação da Liga Paulista de Futebol, a primeira do país.
Mas nesse mundo globalizado a Califórnia é aqui. Meus netos terão, talvez, a mesma emoção que tenho ao falar do Brás, quando lembrarem, aos quase 60 anos, do Vale do Silício onde teve origem, no mundo que eles conheceram, empresas que influenciam o nosso dia a dia como a Apple, Google, Electronic Arts, Symantec, Advanced Micro Devices (AMD), eBay, Maxtor, Yahoo!, Hewlett-Packard (HP), Intel, Microsoft, entre muitas outras.
Essa minha inferência (reflexão intelectual pela qual passo de uma verdade para outra verdade, no meu cotidiano, com Felipe, Pedro, Marco e Guilherme), parece não ter fim. O que é maravilhoso. Além de provocar uma intensa necessidade de me atualizar, cria em mim uma obrigação de preservar-me para vê-los crescer mais e invejá-los quando eles me apresentarem suas lindas, esbeltas e interessantes namoradas.
Visitando sistematicamente com os meus quatro garotinhos, fonte das minhas maiores e melhores inspirações, o Clube Pinheiros, os grandes supermercados, os sofisticados shoppings, os belos teatros, os elegantes e modernos cinemarks e os inúmeros Mc Dolnald`s, instalados em São Paulo, em qualquer outra cidade do Brasil ou até mesmo no exterior, não esqueço do Brás. Saí do Brás, mas o Brás não saiu de mim.
Me recordo das suas belas e elegantes cantinas italianas (do Chico – do meu primo Orlando, Ballila, Machiarolli, Marinheiro e 1060). De seus enormes restaurantes de mesas simples e toalhas com as cores da bandeira da Itália (Tiradentes, Brazeiro, Santa Cruz e Garoto). Das suas lojas de departamentos (Eletroradiobras, Móveis Pascoal Bianco, Lojas Garbo, A Exposiçâo-Cliper e Casas Pirani, “a Gigante do Brás”). Dos cinemas (Glória, Universo, Piratininga, Oberdan. Bruni Brás, Roxy e Braspolitiama). Do teatro Colombo, no Largo da Concórdia. Dos armazéns de secos e molhados. Das leiterias. Da doceira Bauducco. E da adega do Brás, da família Chiappetta.
No Clube Pinheiros, um dos espaços mais nobre da cidade de São Paulo, alguns de meus netos até estudam lá. Quase todos praticam esportes. Às vezes, os quatro almoçam e jantam no clube e, sempre, brincam e se divertem com seus amigos nesse quarteirão emblemático de São Paulo. Ao entrar na Rua Tucumã, acesso ao estacionamento do Pinheiros, para ver meus netos com seus amigos, para buscá-los ou até mesmo para participar de alguma atividade social, lembro do Clube Independência e da Garagem dos Bondes, na Rua Rubino de Oliveira.
O Independência nasceu improvisado na Avenida Celso Garcia, num anexo das Casas Pirani, até construir sua sede própria na Rua Carlos Botelho, paralela da própria Celso Garcia, no coração do Brás. Lá aprendi a dançar, joguei bola e experimentei a primeira bebida alcoólica – tudo na companhia inseparável de meus irmãos e primos Luchetti, Citrini, Vicário, Faria, Galetto e Romano, além de meus amigos Tavollari, Carvalho, Damiani, Venturelli e Ferraciolli. O nosso time, o Passos Clube, era muito bom de dança, bebida e futebol. Até jogamos contra o Periquitos do Brás, time formado por ex-jogadores do velho Palestra Itália e do Palmeiras pós-guerra.
Hoje os meus quatro netos já falam muita coisa em inglês, bem instruídos pelas suas escolas, pela internet e por esse mundo globalizado. Alguns até pronunciam frase inteiras em alemão e se expressam em 140 caracteres no Twitter. E aí eu volto ao Brás, verbalizando sentimentos. Há quase 60 anos, o nosso dialeto, resultante da mistura da língua dos nossos imigrantes italianos com a fala do povo brasileiro, era “português macarrônico”. Mistura lingüística sempre lembrada no clássico “Samba Italiano”, de Adoniran Barbosa, relembrado em novela recente “Passione”, e um pouco antes pelo escritor Juó Bananere, autor do livro “La Divina Encrenca”.
Macarrão é massa, lembram os bons manuais de culinária e diz tudo sobre o Brás. Os italianos bons de garfo, que migraram para o Brasil e se fixaram no Brás, incrementaram no nosso cardápio todas as massas, risotos, polpetones, sorvetes e doces. Foi tanta novidade gastronômica que mudou o gosto da alimentação e a mesa dos brasileiros.
O meu maior orgulho é que meus quatro netos, Felipe, Pedro, Marco e Guilherme, além de todos torcerem para o Palmeiras, gostam mais de pizza do que Mc Donald`s. E a pizza, acreditem, nasceu no Brás. A pizza foi introduzida pelos imigrantes italianos no bairro do Brás, onde foi fundada a primeira cantina, em 1910, a Santa Genoveva, já extinta. Em 1924 surgiu a segunda cantina mais antiga, a Cantina Castelões, que existe até hoje e mantém em seu cardápio pizza com borda alta e massa grossa original, na Rua Jairo Góis, travessa da Avenida Rangel Pestana, com as paredes repletas de fotos de jogadores de futebol de várias épocas. Em seu primeiro endereço ainda era um bar e funcionou na Rua São Bento, pedaço que simbolizava então o centro nervoso da cidade no início do século passado.
A minha maior vingança é que o Mc Donald`s, que também nasceu na Califórnia, berço do Vale do Silício, mesmo sendo a maior rede de fast food do mundo, presente em 120 países e com mais de mil lanchonetes no Brasil, não conseguiu superar em São Paulo a nossa pizza, que nasceu no Brás.
Depois da Santa Genoveva e da Castelões, mais de 3.000 pizzarias estão hoje espalhadas pela cidade de São Paulo. Nelas consumimos mais de 1 milhão de suculentas pizzas por dia, consideradas as melhores do mundo, inclusive mais saborosas do que as feitas na Itália. É por estas e outras tantas razões que a gente sai do Brás, mas o Brás não sai da gente.
Do meu maior orgulho e da minha maior vingança, lembro das mais marcantes tristezas que vivi no Brás. Desobediência, notas baixas na escola ou qualquer outra molecagem, convencionalmente não aceita, eram reprimidas com castigo. Era terrível. Não sair na rua, ficar sem jogar bola, deixar de andar de bicicleta e se ausentar da convivência com primos e amigos.
Meus netos, que vivem e desfrutam das maiores e melhores tecnologias do Vale do Silício, também ficam de castigo quando cometem os mesmos ou até piores equívocos que cometi, nas décadas de 50 e 60, durante minha infância e adolescência. Mas hoje eles ficam sem o iPhone e sem a internet. Não falam com os primos e amigos através do Twitter, Orkut e Facebook. No home theater são proibidos de entrar, e o Playstation, já sabem que está trancado no armário, inacessível.
Como no Brás, parece que tudo mudou. Mas não é verdade. A censura e a advertência dos pais que conviviam com seus filhos no antigo bairro italiano, são iguais as de hoje da era digital. Os castigos também são pueris, só que agora eletrônicos. Os nossos defeitos são os mesmo de nossos filhos e netos, eles só não adquiriram ainda a nossa experiência e o nosso conhecimento. Nós falamos o que fizemos na vida e eles digitam aquilo que querem fazer.